terça-feira, 20 de janeiro de 2015

Como é bom ajudar os outros... O grande mistério da Refood é só um: por que não foi feito antes?


Desperdício zero

Na vida de Hunter Halder todos os caminhos parecem ir dar em Fátima. Em 1988 ainda morava em Richmond, na Virginia (EUA), de onde é natural, quando foi presenteado com uma peregrinação a Fátima, pela congregação da igreja que frequentava. “Eu e mais 100 senhoras de cabelo branco”.

Na altura, o “jovem de 38 anos” apaixonou-se pela guia turística portuguesa, de nome Fátima - “um casamento atualmente já desfeito”. Mais recentemente, há quase quatro anos, instalou o projeto que lhe mudou a vida na freguesia lisboeta de Nossa Senhora de Fátima, a Refood, diminutivo de rescuing good food (salvando comida boa).

“Tudo começou com um homem, uma visão e uma bicicleta. Uma visão simples: resgatar as sobras alimentares dos estabelecimentos de alimentação e, com estas, evitar a fome de quem mais precisa” - é desta forma que o blog da Refood apresenta o projeto.
“Era visto como o estrangeiro maluco, de bicicleta e chapéu de palha na cabeça.

Quase sempre diziam-me: “Temos muito poucas sobras”

A ideia, posta em prática em 9 de Março de 2011, nasceu com e para combater a crise. Hunter Halder já tinha chegado aos 60 anos e vivia há duas décadas em Portugal. Era consultor - fazia team building - quando de repente se viu sem trabalho e sem idade para se relançar na carreira. Mas em vez de sair derrotado decidiu seguir o seu instinto altruísta: “Se eu estou mal, há quem esteja pior. Decidi não trabalhar mais para mim, mas para os outros”.

Na sua mente começaram então a fervilhar algumas ideias para ações humanitárias. A Refood foi das últimas a ser pensada, mas a primeira a ser concretizada. “Afinal, a fome tem um maior caráter de urgência”.

Foi num almoço com a filha, num buffet de saladas, que a ideia começou a ganhar forma. Ao tomar conhecimento que toda a comida que sobrava ia ter o mesmo destino - o lixo -, a jovem de 18 anos ficou revoltada. “Disse-lhe que isso não acontecia só nos restaurantes em Lisboa, mas nos de todo o mundo. Ela, brava, culpava os empregados do restaurante, ao que respondi que eles não tinham culpa. Afinal não tinham alternativa.

E foi aqui que se fez luz, quando referi a palavra alternativa. Pensei: 'Mas eu posso sê-la'. A capacidade de implementá-la estava completamente nas minhas mãos”.

Foi assim que, de bicicleta, começou a pedalar pela zona onde mora, a freguesia de Nossa Senhora de Fátima, nas Avenidas Novas, para propor aos comerciantes de restaurantes - “os meus parceiros naturais” - que lhe entregassem os desperdícios alimentares para satisfazer os mais carentes da região.

Cedo percebemos que a geografia tem pouco a ver com o voluntariado, este só depende da boa vontade e do empenho das pessoas.

“De início fui a 45 restaurantes e 30 disseram que sim. Mas não foi fácil, era visto como o estrangeiro maluco, de bicicleta e de chapéu de palha na cabeça, a quem olhavam com alguma desconfiança. Diziam-me quase sempre: 'Não vale a pena, temos muito poucas sobras'. Ao que eu respondia: 'Parabéns, venderam tudo!“, lembra com um sotaque ainda carregado das suas origens.

Na igreja de Nossa Senhora de Fátima, onde pediu uma antiga cozinha da paróquia para criar o centro de operações do Refood, também o prior Luís Alberto teve “um pé atrás e outro à frente”. Mas a persistência deu frutos. E o que começou com um voluntário - ele próprio -, ao fim de um mês já tinha 30 voluntários.

A engrenagem começava a ficar bem lubrificada. “Todos os restaurantes têm sobras, comida boa que normalmente vai para o lixo, enquanto a fome urbana aumenta, e muita vez envergonha. Só é preciso
que alguém faça a ponte entre quem dá e quem precisa. Começamos por seguir primeiro uma estratégia geográfica - vamos fazer freguesia por freguesia -, mas cedo percebemos que a geografia tem pouco a ver com o voluntariado, este só depende da boa vontade e do empenho das pessoas”.

Os portugueses têm-se mostrado muito solidários. Só precisavam de alguém que tivesse a iniciativa, que lhes desse a vara para pescar.

Primeiro foi o boca a boca para espalhar a semente, depois houve que organizar as equipes de voluntários, definir quem faz o quê. “Na entrevista que faço aos potenciais voluntários, explico-lhes que só precisam de me dar duas horas por semana. E os portugueses têm-se mostrado muito solidários. Só precisavam de alguém que tivesse a iniciativa, que lhes desse a vara para pescar”.

É num quadro afixado numa das paredes do primeiro centro de operações da Refood, num anexo à igreja de Nossa Senhora de Fátima, que estão registrados os dados das famílias beneficiadas - “só aqui ajudamos 231 pessoas”: a idade, as preferências de cada um, se têm doenças como a diabetes ou alergias alimentares. Ao lado, define-se quem faz o quê e em que horário.

Habitualmente, são os beneficiados que se deslocam ao centro com os tupperwares vazios “e lavados” do dia anterior, para os levarem cheios de volta, com sopa, prato principal, pão, fruta ou bolos. Os sacos que estas famílias levam por volta das 20h30 são preparados desde as 18h pela equipe de voluntários que está no centro, enquanto outra equipe já fez entretanto a ronda pelas pastelarias (para o pão e os bolos) e mais tarde, entre as 22h e as 23h30, outros voluntários fazem a ronda pelos restaurantes para resgatarem a comida que sobrou.

Esta comida fica depois acondicionada e etiquetada no frigorífico para que tudo se repita no dia seguinte. Há também distribuição de comida ao domicílio, para quem não pode deslocar-se ao centro. Aí, entram outros voluntários em ação, a equipe de transporte e distribuição que opera preferencialmente de bicicleta, com cestos à frente e atrás…

O primeiro objetivo era transformar Lisboa “na primeira cidade sem desperdício alimentar”, hoje a ambição é muito maior.

Hoje, ao fim de quase quatro anos de trabalho, são mais de mil voluntários, mais de 300 mil refeições entregues e oito núcleos Refood em funcionamento em Portugal. E até a nível internacional existem equipes em formação em Barcelona, Madrid, Milão, Londres e Buenos Aires, “sendo que a nossa experiência foi também inspiradora para outros projectos”, explica Hunter Halder: em Amesterdão (Buurt Buik) e em várias cidades da Índia (The Robin Hood Army).

Claro que toda esta expansão contou desde o início com vários apoios. Desde logo, o apoio das juntas de Freguesia e igrejas que ajudam a fazer o levantamento das famílias carentes. Algumas têm também cedido os espaços para os núcleos da Refood. Depois, os restaurantes e pastelarias, assim como outras empresas que se têm vinculado ao projeto e que têm ajudado com comida ou transporte, como os três carros elétricos que irão juntar-se à frota da Refood.

Se o “americano alfacinha”, como se auto-intitula, tinha como primeiro objetivo transformar Lisboa “na primeira cidade sem desperdício alimentar”, hoje a sua ambição é muito maior: passa por deixar a semente da Refood em vários pontos do mundo. Hunter diz que ao fim de quase quatro anos sente-se “cansado, mas com muita alegria”. E considera que os grandes beneficiários da Refood são os próprios voluntários. “Como é bom ajudar os outros... O grande mistério da Refood é só um: por que não foi feito antes?”.

Por Filipa Moroso*
filipa.moroso@sol.pt
Publicado originalmente no Semanário Sol em http://www.sol.pt/noticia/121490.

Blog oficial da Refood:  http://www.re-food.org/blog/

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Ilustrações: DesignCRV

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